Bicho cresceu no Rio com ajudar de torturadores

Por Chico Otavio e Aloy Jupiara

RIO — Isolado na tropa, o capitão Aílton Guimarães Jorge pediu demissão do Exército no dia 9 de março de 1981. O gesto do oficial, ao trancar a farda no armário, selou uma aliança que mudaria o perfil do crime organizado no Brasil: a de agentes da ditadura com a contravenção. Capitão Guimarães é a face mais exposta desse processo, mas não a única. A partir dos anos 1970, um pequeno pelotão de agentes migrou dos porões da tortura para as fileiras do jogo do bicho, levando junto a brutalidade, a arapongagem e a disciplina da guerra suja contra as esquerdas. Bicheiros ajudaram a perseguir inimigos do regime, e a ditadura retribuiu com proteção e impunidade.

Pesquisas a documentos de dois arquivos públicos e da Biblioteca do Exército e depoimentos de agentes, policiais, vítimas da repressão e especialistas permitiram ao GLOBO revelar detalhes e personagens desse processo. Pelo menos dez agentes, entre militares e civis, atuaram na máfia da jogatina ou colaboraram com ela, chegando a ocupar cargos na hierarquia do bicho, principalmente a partir do desmonte gradual do aparelho repressivo no governo Geisel. Sob a influência da doutrina militar e ao custo de uma guerra nas ruas, o jogo do bicho — antes fracionado e informal — tornou-se centralizado e organizado.

Esvaziados pelo processo de distensão política ou excluídos por envolvimento em crimes comuns, agentes da repressão encontraram abrigo na máfia do jogo do bicho quando a guerra suja perdia a força na metade dos anos 1970. O coronel Freddie Perdigão Pereira, os capitães Ronald José Motta Baptista de Leão e Luiz Fernandes de Brito, o sargento Ariedisse Barbosa Torres, o cabo Marco Antônio Povoleri, os delegados Luiz Cláudio de Azeredo Vianna, Mauro Magalhães e Cláudio Guerra, e o detetive Fernando Gargaglione, além do Capitão Guimarães, todos com folha de serviços prestados à ditadura, são citados por essas fontes e documentos como integrantes desse pelotão arregimentado pelo bicho.

Com eles, a experiência de violência e espionagem adquirida nos porões somou-se às práticas da contravenção. Guimarães, que caíra em desgraça no Exército ao ser flagrado comandando uma quadrilha de contrabandistas fardados, encontrou na jogatina fora dos quartéis o caminho para o topo de uma nova hierarquia, à paisana. Aniz Abraão David, o Anísio da Beija-Flor, estabeleceu seu clã político na Baixada Fluminense e se blindou da ação da polícia sobre seus negócios. Castor Gonçalves de Andrade e Silva, o Castor da Mocidade Independente, íntimo de agentes da repressão, negociou com o regime, sendo beneficiado quando sua metalúrgica beirava a falência. Ângelo Maria Longas, o Tio Patinhas, expandiu seus negócios em Niterói com a ajuda de Guimarães.

Assassinatos do período misturaram interesses militares e civis, envolvendo bicheiros e ex-torturadores, desde o de pequenos contraventores, como Agostinho Lopes da Silva Júnior, o Guto (em junho de 1979), cujos pontos em Niterói, São Gonçalo e Itaboraí foram assumidos pelo Capitão Guimarães, a crimes famosos, como o de Misaque José Marques e Luiz Carlos Jatobá (em janeiro de 1981), acusados de invadir a casa de Anísio em Piratininga, Niterói, e do policial Mariel Maryscotte de Mattos (em outubro de 1981), depois de tentar comprar os pontos do bicheiro Jorge Romeu, o Jorge Elefante, em Niterói.

Repressão contra políticos da baixada

A guarnição da 1ª Companhia de Polícia do Exército (PE), da Vila Militar, em Deodoro, foi a gênese desse fenômeno. No final dos anos 60, a PE desencadeou uma repressão contra políticos da Baixada Fluminense, a maioria prefeitos e vereadores cassados pelo regime sob acusação de corrupção. Foi essa limpeza que abriu o terreno para que, em Nilópolis, o clã liderado por Anísio assumisse o controle político local e se apoderasse dos pontos de pequenos bicheiros. Nos anos 1970, Guimarães, Luiz Fernandes e Povoleri, todos da PE e integrantes de um grupo processado por extorquir contrabandistas, começaram seu movimento em direção à contravenção.

Dois dos principais centros de tortura do Rio, o Destacamento de Operações de Informações (DOI) da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, e a “Casa da Morte”, aparelho montado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) em Petrópolis, também foram incubadoras de capangas da contravenção. Na Casa, por exemplo, atuou o então comissário e depois delegado da Polícia Civil Luiz Cláudio, codinome na repressão “Laurindo”, mais tarde braço-direito de Anísio. O sargento Torres, que teria feito parte da equipe de interrogadores do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido em 1971, é outro que migrou do DOI à contravenção. Ele se tornou segurança de Anísio e chefe de barracão da escola de samba Beija-Flor.

Os resultados dessa aliança, pouco depois, seriam vistos com a consolidação de uma nova cúpula do bicho — a verticalização do poder, a eliminação gradual de lideranças de pequeno e médio porte, a anexação de territórios antes fracionados e a organização de rotinas. São dessa época a adoção do sistema de atas nas reuniões e o mapeamento dos pontos, até então distribuídos de forma improvisada. Também foram os agentes da ditadura que ensinaram os bicheiros a grampear seus adversários.

Sistema de “acusações, apurações e punições”

Unidos pelos interesses da contravenção e por um projeto de poder, Castor, Anísio e Guimarães (que passara a controlar a Unidos da Vila Isabel) fundaram em 1984 a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Castor foi o primeiro presidente, entre 1984 e 1985; Anísio, o segundo, entre 1986 e 1987; Guimarães reinou entre 1987 e 1993, e, depois, entre 2001 e 2007.

— O sistema discricionário de acusações, apurações e punições da ditadura militar deu poder excepcional a certos grupos ligados às polícias, ao SNI e ao sistema DOI-Codi. Deu-lhes, especialmente, tecnologia e know-how para conseguir ou fabricar informações que custavam vidas e rendiam muito dinheiro. Montou-se com a ajuda desses operadores da repressão e da tortura a quase inexpugnável rede mafiosa do jogo do bicho e empresas de arapongas. A Liga das Escolas de Samba é patrocinada e dirigida por contraventores. Ironicamente, no carnaval, nenhum político ou governante posa ao lado de seus organizadores, embora a Liesa seja financiada com dinheiro público — diz Maria Celina d’Araújo, cientista política da PUC-RJ.

Procurados pelo GLOBO, os agentes ou parentes não quiseram falar ou não foram encontrados. Os advogados de Guimarães e Anísio não retornaram as ligações.

Personagens do bicho:

Castor de Andrade

Filho do bicheiro Eusébio Andrade, herdou do pai territórios de jogo na Zona Oeste, mantendo o poder com mão de ferro. Foi presidente de honra do Bangu Futebol Clube e da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Íntimo de militares, manteve negócios com o Exército. Seu poder entrou em declínio em 1994, na Operação Mãos Limpas, quando o Ministério Público e a PM estouraram sua fortaleza e apreenderam livros-caixa. Na contabilidade, foram encontrados nomes de políticos e policiais suspeitos de dar proteção aos contraventores em troca de propinas. Morreu de infarto em 1997. Seu filho e sucessor, Paulo Andrade, foi assassinado em outubro de 1998, na guerra por seu espólio.

Capitão Guimarães

Oficial de Intendência, serviu na PE da Vila Militar-RJ e no DOI-Codi-RJ até 1974. Era conhecido nos porões pelo codinome “Doutor Roberto”. Recebeu a Medalha do Pacificador com Palma em 1969, depois de matar um integrante da VPR. Pouco depois, envolveu-se com o contrabando, cooptado por policiais corruptos, e se demitiu em 1981. Tornou-se banqueiro do bicho em Niterói, apadrinhado por Ângelo Maria Longa, o Tio Patinhas, e chegou à cúpula em quatro anos. Passou a controlar o jogo em Niterói, Região dos Lagos e no Espírito Santo, deixando um rastro de violência. Presidiu a Unidos de Vila Isabel e a Liesa. Foi preso na Operação Marselha, em 1989, no processo presidido pela juíza Denise Frossard, em 1993, e na Operação Furacão, em 2007.

Anísio Abraão David

Líder do clã que, com a ajuda dos militares, passou a controlar politicamente Nilópolis, na primeira metade dos anos 1970. A pretexto de combater a corrupção, agentes do regime perseguiram e cassaram os adversários da família. Fortalecido, Anísio dominou o jogo do bicho na Baixada Fluminense e na Região Serrana, chegando, no mesmo momento, à cúpula da contravenção. Patrono da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, tricampeã em 1976, 77 e 78. Em 1981, foi acusado de envolvimento no assassinato de Misaque José Marques e Luís Carlos Jatobá. Preso em 1993, por formação de quadrilha, e em 2007, por corrupção ativa e passiva.

Luiz Fernandes de Brito

Como capitão, foi acusado de integrar uma quadrilha de contrabandistas. Mais tarde, teria ajudado Mariel Maryscotte a fugir.

Mauro Magalhães

Delegado de Petrópolis em 1971, apoiava a Casa da Morte. Mais tarde, apareceu na lista da propina de Castor de Andrade.

Marco antônio Povo Leri

Braço-direito de Capitão Guimarães na repressão, foi expulso do Exército e atuou depois como segurança do bicheiro.

Luiz Cláudio de Azeredo Vianna

Policial civil, apontado como torturador em Petrópolis, ajudou Anísio a dominar o jogo do bicho na Baixada Fluminense.

Cláudio Guerra

Delegado no Espírito Santo, serviu à repressão. Mais tarde, aliou-se ao Capitão Guimarães, ajudando-o a expandir os domínios.

Ariedisse Barbosa Torres

Um dos acusados do desaparecimento de Rubens Paiva, virou segurança de Anísio e chefe de barracão da Beija-Flor.

FONTE: O Globo. <http://oglobo.globo.com/pais/bicho-cresceu-no-rio-com-ajuda-de-torturadores-10267365 >