Por Rachel Abrão[1]
Em maio desse ano fui fazer uma visita aos meus familiares em São Paulo, capital, minha cidade mãe, cidade cinza, triste, mas repleta de histórias guardadas, de memórias não escutadas nem exploradas. Nessa época, já tinha me informado a respeito do Memorial da Resistência de São Paulo e não pude deixar de me programar para uma visita, pois seria um modo de finalmente conhecer um pouco dessas histórias que foram abafadas, torturadas e castigadas pelo golpe civil-militar instaurado em 1964 e aprofundar-me no tema sobre direitos humanos.
O prédio onde está instalado o Memorial da Resistência se situa no centro da cidade, muito perto da Pinacoteca do Estado e da Estação da Luz, parte da cidade que busca um resgate cultural importante do patrimônio histórico, mas que ao mesmo tempo, nega e trata como invisíveis às histórias e memórias dos vários indivíduos que por ali rondam buscando e juntando com que alimentar o seu estômago, ou mesmo a mente, para que seja possível suportar aquela miséria da situação. Esse edifício que abriga e reaviva a memória da resistência de São Paulo, e que vive rodeado de outras de histórias ocultas, foi construído durante o século XX para abrigar os escritórios e os armazéns da Companhia Estrada de Ferro Sorocaba. Mais tarde os militares se apropriaram do prédio e transformaram-no em sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo – DOPS/SP. Como sede do DOPS/SP esse edifício ficou marcado pelas histórias e memórias de muitos indivíduos que ali conviveram. Memórias dos que trabalharam na instituição e memórias dos militantes de esquerda, presos por serem considerados subversivos e inimigos da Nação.
Horrores aconteceram no interior do prédio, suas paredes escutaram muitos murmúrios, planos de escape, choros, lamentações e alegrias, que só a própria estrutura saberia reproduzir tudo o que passou por lá. Assim como as pessoas deixaram suas marcas no edifício, para além dos nomes e poemas escritos nas paredes, o próprio prédio deixou sua forte marca na memória das pessoas, era um tipo de ambiente que, mesmo se passando apenas uma vez por lá, dificilmente seria esquecido ou passaria em branco. Por esse motivo, por ser um espaço que guarda há tanto tempo as histórias de repressão de tantas pessoas, se sentiu a necessidade de convidar o prédio do antigo DOPS/SP a reavivar e relembrar as duras memórias daquele tempo, retirando essas histórias do porão do prédio, retirando suas teias de aranha, e resgatando a essência do significava aquele lugar, com muitas celas e muita gente, pouco ar e pouca luz. Local de extrema repressão e violência.
Hoje o Memorial da Resistência de São Paulo faz parte da Estação Pinacoteca e é um espaço museológico que realizou muito bem esse diálogo com as memórias do edifício do DOPS/SP, e que busca, por meio desse resgate da memória dos segmentos da população que manifestaram sua resistência ao período de ditadura civil-militar (1964-1985), expor e conscientizar a população.
Para conseguir realizar minha visita e chegar até o local do Memorial da Resistência de São Paulo, peguei alguns metrôs até a monumental Estação da Luz, e de lá fui caminhado por essas ruas, que também tem muito para nos contar, até o antigo prédio do DOPS/SP.
Ao entrar no suntuoso edifício histórico, busquei por uma bilheteria, deixei meus pertences na chapelaria, e me preparei para um longa e difícil imersão no tempo, retornar uma época de extrema repressão política no país, de dor e sofrimento. Os espaços do Memorial se situam todos no andar térreo do prédio, sendo a primeira sala destinada a exposições temporárias, e naquele dia 16 de maio tive a oportunidade de apreciar a exposição fotográfica “Ausências”, de Gustavo Germano. O fotógrafo trouxe uma proposta muito difícil, que me chocou e sensibilizou intensamente, de expor 12 pares de fotografias de famílias vítimas da ditadura civil-militar brasileira, e 2 pares de famílias argentinas que tiverem seus parentes mortos ou desaparecidos pela ditadura civil-militar naquele país (1976-1983). Cada par é formado por uma fotografia fornecida pela própria família, contraposta ao retrato realizado por Gustavo Germano recentemente. É uma exposição que apela pela valorização dos princípios democráticos e pela respeitabilidade aos direitos humanos, tema que segue muito em voga, principalmente nos dias de hoje em que é preciso conscientizar as pessoas sobre os imensuráveis danos causados pela ditadura civil-militar em toda América Latina.
Seguindo o trajeto indicado pelo Memorial da Resistência, cheguei à segunda sala onde, através de um equipamento multimídia muito interativo e explicativo, se torna possível compreender de forma didática muitos conceitos, referencias e até eventos relacionados ao controle, repressão e resistência. As outras paredes da sala estão repletas por uma enorme linha do tempo política, que abarca tanto os fatos brasileiros como e entrelaça com os acontecimentos internacionais, tem muita informação exposta nessas paredes, é preciso ler tudo com bastante atenção.
Continuando o caminho, segui por um corredor escuro, onde se situa o conjunto prisional, com quatro celas remanescentes e uma saída para o pequeno corredor do banho de sol. Nesse momento senti uma agonia e uma grande dor que subiu até minha garganta. A caminhada pelo corredor gerou uma sensação muito estranha no meu corpo, me senti como as pessoas que passaram por lá, como parte ativa de tudo aquilo! A pouca luz, o espaço úmido e apertado, as portas imensas de madeira com apenas uma pequena entrada para passar a comida, tudo isso que trouxe uma angustia.
Haviam muitas máscaras brancas penduradas pelas paredes, todas com um nome na lateral identificando a pessoa, essas mascaras representavam muitas das pessoas que passaram pelo DOPS/SP, e a etiqueta de identificação era azul ou vermelha. Azul para os desaparecidos, e vermelha para os que foram assassinados. Tudo isso proporcionou um ambiente chocante, que instigou a indignação. As celas foram caracterizadas de diferentes formas didáticas, a primeira com um vídeo no centro, a segunda com uma tentativa de recuperar as escritas que existiam nas paredes (houve toda uma pesquisa realizada para ser o mais verossímil possível essa representação), a terceira com finos colchonetes e varais pendurados pela sala buscando uma fiel imitação de como funcionava a dinâmica daquele cubículo com cerca de vinte pessoas cada, e a quarta, foi a que mais me impressionou. Na última cela haviam vários fones de ouvido onde era possível escutar as histórias de algumas pessoas que por ali passaram, nesse momento foi difícil conter as lágrimas.
No centro da sala se via um cravo vermelho representando o depoimento de uma senhora, ela conta que em um natal estava lá presa, e pediu para sua mãe levar pedaços de bolo para todos os presos, mas não só isso, pediu também para que sua mãe fizesse algo muito mais representativo, distribuindo cravos vermelhos para todas aquelas pessoas que haviam buscado lutar contra a repressão e a injustiça, e agora estavam ali trancafiadas num momento que busca a alegria e a comunhão. Foi um momento de grande imersão em que me transpus para esse acontecimento histórico relembrado pela memória daquela senhora. Imaginei-me estando ali, presa, com mais vinte pessoas, torcendo para que não fosse a próxima a ser levada para a sala de tortura, querendo apenas respirar um ar puro no corredor do banho de sol, e que a única fagulha de vida que me revigorava era a companhia de meus colegas batalhadores, e daquelas velhas paredes, sujas e já muito rabiscadas, mas que guardariam a minha memória para que um dia ela pudesse ser repassada sem nenhuma censura.
A visita ao Memorial da Resistência de São Paulo terminou em uma sala com muitos computadores, um espaço que oferece um aprofundamento para o pesquisador buscar no banco de dados referenciais, onde se encontram fotografias e documentos provenientes de dossiês e prontuários produzidos pelo DOPS/SP.
Ao sair do antigo prédio da Ordem Política e Social do Estado de São Paulo- DOPS/SP, o espectro da opressão rondou tudo ao meu redor. O centro de São Paulo passa uma sensação de opressão, o olhar dos indivíduos – meio mortos meio vivos – que por ali rondam me fizeram pensar…..
Sem dúvida, os tempos são outros, mas a luta pela Memória,Verdade e Justiça deve permanecer, “é preciso preservar essas memórias e extrair delas lições de vida que permitam a adequada compreensão do nosso tempo. Enquanto lembramos, tudo é possível” (Elie Wiesel).
[1] Aluna de graduação do curso de Ciências Sociais – UFSC, pesquisadora do Memorial dos Direitos Humanos – UFSC, bolsista PROEX.