Preso na manhã de 29 de setembro de 1969, o cidadão brasileiro Virgílio Gomes da Silva deu entrada no Instituto Médico-Legal no dia seguinte, na condição de morto. Os legistas Roberto A. Magalhães e Paulo A. de Queiroz Rocha descreveram suas lesões.
Por Angeli (“Folha de S. Paulo”, 17.mar.2014)
Eis a síntese do laudo necroscópico, que eu descobri esquecido no Arquivo Público do Estado de São Paulo e conforme narrei em livro: “Hematomas, escoriações e equimoses escureceram rosto, braços, mãos, joelhos, tórax, abdome, o corpo inteiro. As depressões nos pulsos, típicas de dependurados no pau de arara mediram um centímetro. O ‘hematoma intenso’ na ‘polpa escrotal’ era compatível com eletrochoques no órgão. Com bicos de calçados, tora de madeira ou pedaço de ferro, fraturaram três costelas. Na parte superior do crânio, produziram um ‘hematoma intenso e extenso’. Em toda a superfície do encéfalo, um ‘hematoma irregularmente distribuído’. Fraturaram e afundaram o osso frontal, do crânio. A autópsia concluiu que Virgílio ‘veio a falecer em consequência de traumatismo cranioencefálico (fratura do crânio)’, provocado por ‘instrumento contundente’. Uma fotografia mostrou o lado esquerdo da cabeça mais afundado que o direito”.
Os legistas eram insuspeitos de veleidades oposicionistas. No quesito 4 do laudo, ousaram afirmar que o óbito não fora causado por “tortura” ou “outro meio insidioso e cruel”.
Virgílio era guerrilheiro, militante da Ação Libertadora Nacional, maior organização armada de combate à ditadura instaurada em 1964. Desde a detenção da véspera estava sob custódia do Estado, na rua Tutoia, onde funcionava a Operação Bandeirante, repartição repressiva controlada pelo Exército e criada semanas antes. Houve testemunhas de seu calvário na tortura. O preso nascera no sertão do Rio Grande do Norte, estudara até a quarta série primária e tinha 36 anos. Até hoje é um “desaparecido político”.
Corte para março de 2014, quando se prepara uma nova manifestação evocando a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, concentração contra o presidente João Goulart ocorrida em 19 de março de 1964 _50 anos nesta quarta-feira.
Na reportagem “Grupo organiza nova edição de passeata anticomunista de 64″ (leia aqui), pontificou Cristina Peviani, 51, identificada como um dos promotores da marcha requentada. Uma passagem da matéria:
“Questionada sobre práticas como tortura e perseguição a opositores do regime militar, Peviani afirma não concordar com os métodos, mas deixa claro acreditar que o país vivia em guerra. ‘Eu nem sei se eles adotaram isso [a tortura]. Porque o pessoal que diz que foi torturado está tão gordo, tão forte, tão bonito, né? Eu vi lá na comissão [da Verdade de São Paulo], que eles não tinham uma marquinha sequer. Mas, o seguinte: era uma guerra entre o bem e o mal. Os dois mataram. Eu tenho uma lista imensa de soldados mortos pelo comunistas.”’
Trocando em miúdos, a senhora Peviani rejeita o fato histórico de que a tortura foi política de Estado durante a ditadura, instrumento empregado contra milhares de pessoas. E que provocou a morte de parcela expressiva dos mais de 400 opositores assassinados pelo regime que vigorou até 1985.
Não foram somente guerrilheiros os mortos na tortura. Numerosos militantes antiditadura que se opunham ao método da luta armada também foram assassinados. Do ponto de vista histórico e legal, inexiste diferença entre as vítimas: nem mesmo a legislação da ditadura autorizava sevícia, execução e desaparecimento forçado.
As provas de tortura _a estudante Dilma Rousseff foi um dos torturados_ são tamanhas que negar sua existência equivale a negar o Holocausto que tirou a vida de cerca de 6 milhões de judeus na Segunda Guerra.
As proporções são distintas, mas a essência da maldade é a mesma, na ditadura e no nazismo.
Embora sejam barulhentas, as viúvas da ditadura são ultraminoritárias.
Para defender o mal, empenham-se em ocultar a tortura.
Mais do que desonestidade intelectual, constitui aberração histórica e criminosa, como duvidar do genocídio de autoria do III Reich.
Abram alas para a nova marcha da família, abram alas porque, como apregoou certa feita um personagem histórico, a Idade Média vai passar.
Fonte: http://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2014/03/18/marcha-da-familia-negar-tortura-na-ditadura-equivale-a-negar-o-holocausto/?fb_locale=pt_BR&fb_action_types=og.recommends