Morte de Judith Malina traz à cena repressão vivida por ela e pelo marido
A morte da atriz e diretora de teatro alemã Judith Malina (1926-2015), há uma semana, em Nova York, nos Estados Unidos, reacende as luzes sobre o grupo Living Theater, fundado em 1947 por ela e o marido, o norte-americano Julian Beck (1925-1980), para levar à ribalta arte, ativismo político e um novo jeito de ver o mundo. Rompendo fronteiras, a trupe chegou ao Brasil em 1970, passou um tempo em São Paulo, a convite do Teatro Oficina, e, no ano seguinte, seguiu para Ouro Preto, na Região Central de Minas, onde viveu histórias em três atos marcantes e ainda enigmáticos para muita gente: no primeiro, a preparação da peça O legado de Caim, com encenação prevista para as ruas da cidade; no segundo, a prisão dos 21 integrantes, alguns brasileiros, sob acusação de uso de drogas, às vésperas da quinta edição do Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); e, no epílogo, a expulsão dos atores do país, por decreto do presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985).
O drama de Beck e Judith Malina, pais da menina Isha, então com quatro anos, e dos demais atores começou em 30 de junho de 1971, quando agentes do extinto Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão repressor no regime militar, chegaram ao casarão no Bairro da Barra, onde o grupo vivia coletivamente. Sem oferecer resistência e se declarando inocentes da acusação de “uso de maconha e tráfico”, todos foram levados para a cadeia de Ouro Preto e, de imediato, à sede do Dops em Belo Horizonte, na Avenida Afonso Pena. A criança ficou com um casal de amigos e depois viajou com a avó paterna para os Estados Unidos.
Liberados pela polícia no dia seguinte, diretores e atores foram parar novamente atrás das grades poucos dias depois, prolongando-se o suplício por julho e quase todo o mês de agosto. O caso ganhou repercussão internacional, merecendo destaque nas página do The New York Times. Pressionado, o governo brasileiro passou a receber telegramas pedindo a liberdade do grupo, vindos de celebridades do cinema, da música, de políticos. As mensagens não paravam de chegar a Brasília (DF) e um manifesto internacional foi assinado por John Lennon, Yoko Ono, Jean-Paul Sartre, Marlon Brando, Jane Fonda, Pier Paolo Pasolini, Alberto Moravia, o prefeito de Nova York, John Lindsay, o dramaturgo Tennessee Williams e pore “papas” da comunicação, entre eles, o intelectual Marshall McLuhan.
No Dops, Judith escreveu um diário, publicado, na época, em capítulos pelo Estado de Minas e transformado, em 2008, no livro Diário de Judith Malina – O Living Theatre em Minas Gerais – Arquivo do Dops, publicado pelo Arquivo Público Mineiro/Secretaria de Estado de Cultura. Em 9 de julho de 1971, a atriz escreveu: “Aqui estou na minha cela. Não sinto desconforto. Se sentisse, iria queixar-me? Mas não sinto e posso ser franca. O rádio toca Tchaikovsky. Larguei a edição, em português, da Ilíada, que estou lendo com o auxílio de um dicionário, e tento lembrar o que aconteceu, o que está acontecendo. E tento não pensar no que acontecerá”.
SETA O professor aposentado da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Victor Vieira de Godoy, se recorda bem da passagem do Living Theater (há também a grafia Theatre) pela cidade. Na época, aos 21 anos, ele participava do Grupo Experimental de Teatro e não se esquece da efervescência cultural proporcionada pelo Festival de Inverno da UFMG, coordenado por Júlio Varela. “Nós ensaiávamos na República Pulgatório, na Rua do Paraná, e conhecemos Julian Beck, Judith Malina e demais atores, que ficaram hospedados lá algum tempo. Era um grupo bem peculiar, sem qualquer estrelismo, mesmo sendo de grande importância internacional. Eles gostavam de interagir com a comunidade, trabalhavam com os operários, faziam da arte uma construção coletiva”, afirma Victor.
“Imaginem um grupo teatral de vanguarda, de Nova York, morando aqui no período mais pesado da ditadura militar! Ouro Preto é uma cidade aberta para o mundo, mas a presença do grupo incomodou muito alguns setores da sociedade, pelas posturas libertárias e estéticas, e logo começaran a surgir boatos contra ele”, conta o professor, que até hoje considera um “enigma” a prisão da trupe. “Nunca entendemos direito essa história. Ao chegar à casa, a polícia encontrou uma seta desenhada na parede apontando para a palavra pot (maconha, em inglês). Tudo leva a crer que a cena foi plantada.”
Autora do capítulo Coisas que ficaram muito tempo por dizer, no livro Diário de Judith Malina, a professora de história da UFMG e coordenadora do Projeto República, Heloísa Starling, acredita que um conjunto de situações levou à prisão dos integrantes do Living Theater. “Eram os tempos da contracultura, da vida em comunidade, de relações mais abertas e do uso de drogas”, diz a professora, lembrando que o verão de 1966 do flower power em São Francisco, na Califórnia (EUA), início do movimento hippie, chegou atrasado ao Brasil, onde ganhou adeptos em 1969-1970. Houve, então, um “arrastão repressivo” do Rio Grande do Sul à Bahia, com a polícia dando batidas em comunidades de vida alternativa. “O Living Theater tinha essa vocação libertária e Ouro Preto ainda era uma cidade conservadora. Houve um conjunto de coisas nessa história da prisão, e não simplesmente uso de drogas”, afirma a professora, que enaltece a corajosa realização do Festival de Inverno, por ser uma “bolha cultural e política” e um evento aberto a experimentações, no pior momento da ditadura.
A vinda para Ouro Preto se deu pelas mãos do ator mineiro Paulo Augusto de Lima, que propagara o clima de “tranquilidade e neblina” entre as montanhas. Depois de um tempo em São Paulo e trabalhos que não decolaram, Julian Beck e Judith Malina se interessaram pela cidade mineira.
ÚLTIMO ATO O fim do martírio de Julian Beck e Judith Malina, defendidos pelo advogado Ariosvaldo de Campos Pires, só terminou em 27 de agosto de 1971, quando o presidente Médici assinou o decreto de expulsão do casal e dos demais atores estrangeiros. Ao saber da determinação, Beck se mostrou indignado, conforme a reportagem do EM: “Fomos expulsos? Então, fomos condenados”.
No texto para a edição de 2008 do Diário de Judith Malina, Heloísia Starling escreveu: “Prender artista era fácil. Prender artista norte-americano era outra coisa. Com o decreto de expulsão, o governo militar reconhecia que não estava sendo fácil enfrentar a pressão internacional e fazia de conta que o episódio dos Beck tinha chegado a bom termo. (…) Muito pouca coisa sobrou como registro. A história temina com poucas informações e um tanto de imprecisão”.
LINHA DO TEMPO
1947 – Criado o grupo teatral Living Theater, em Nova York, nos Estados Unidos, que mescla arte de vanguarda, trabalho coletivo e ativismo político
1970 – Grupo chega ao Brasil a convite do Teatro Oficina, de São Paulo
1971 – Em janeiro, o Living segue para Ouro Preto, disposto a montar o espetáculo inédito O legado de Caim
1971 – Em 30 de junho, os criadores do Living, o casal Julian Beck e Judith Malina, e atores são presos em Ouro Preto, às vésperas do Festival de Inverno, sob acusação de uso de drogas
1971 – Em 5 de julho, os integrantes do grupo teatral voltam a ser presos e ficam nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em Belo Horizonte
1971 – Em 27 de agosto, o presidente da República, general Emílio Garrastazu Médici, assina o decreto de expulsão do país do casal e dos atores estrangeiros
1985 – Em 14 de setembro, Julian Beck, de 60 anos, morre em decorrência de câncer no estômago, em Nova York
2015 – Em 10 de abril, a atriz e diretora Judith Malina morre, aos 88 anos, com câncer no pulmão. Ela morava no retiro de atores Lilian Englewood, no estado de Nova Jersey (EUA)