Vivos': Série de perfis ilustrados homenageia pessoas perseguidas pela ditadura no Brasil  

Em pastas de arquivo, o ilustrador Fernando Carvall desenha rostos de pessoas perseguidas pelo regime militar no Brasil, enquanto Fernanda Pompeu resgata as histórias de vida e de desaparecimento e morte de militantes

Pastas de arquivo guardam os rostos de pessoas perseguidas pela ditadura militar brasileira. Mas essas pastas não estão esquecidas nos porões que testemunharam as torturas e as mortes de muitas delas. Elas foram o meio encontrado pelo ilustrador Fernando Carvall para homenagear as pessoas que combateram o regime militar no Brasil.

Em 2014, no aniversário de 50 anos do golpe, Carvall começou a desenhar a série. “Era importante não deixar passar”, conta a Samuel. “Precisava de um papel com o qual eu pudesse trabalhar à caneta de forma rápida e agressiva, por causa do tema. Cheguei à pasta um pouco por acaso, mexendo no arquivo do estúdio”, comenta sobre o meio que é a mensagem de suas ilustrações. “O legal é que, além do tipo de papel, as pastas remetem a arquivo, anonimato. O furo padrão, que eu procuro ressaltar, lembra agressão, ferimento. Outro aspecto interessante é que os retratos são publicados na horizontal, respeitanto mais a função da pasta do que o personagem. Isto causa estranheza e lembra tortura, o pau de arara.”
As ilustrações têm sido publicadas na série “Vivos”, do blog Nota de Rodapé. Os rostos são acompanhados por textos de Fernanda Pompeu, que resgata a história de cada uma das pessoas retratadas por Carvall. Reproduzimos abaixo as ilustrações e os textos com a autorização dos autores.
Gildo Macedo Lacerda 
Nascimento: 8 de julho de 1949
Cidade natal: Ituiutaba – MG
Morte: 28 de outubro de 1973
Cidade final: Recife, PE
Causa da morte: tortura
Versão da ditadura: troca de tiros entre militantes
A ficha acima é fria como todas as fichas, sejam elas de nascimento, casamento, emprego, pedido de bolsa de estudo. Fichas são como aquelas pulseiras usadas nos hospitais. Nome do paciente e de sua mãe. Dependendo da idade, o aviso-alerta PERIGO DE QUEDA. Ou seja, as fichas também nos humilham. Feitas para particularizar, tiram nossa identidade. Pois parecem comprimir a história de uma longa vida num sujeito que tende a cair.
Mas, é claro, as fichas não são todas iguais. Essa do Gildo Macedo Lacerda diz algo de um garoto morto aos vinte quatro anos sob tortura. Morrer sob tortura significa morrer sofrendo de forma violenta. Não em consequência de uma cirrose hepática, de um câncer generalizado, ou em decorrência de uma batida de carro, desastre de avião, mordida de cobra. Morrer sob tortura significa que alguém matou você. Também no caso do Gildo – e de muitos outros e outras – o corpo foi desaparecido. Leia-se ocultado da família e dos amigos. Cortejo fúnebre que nunca foi visto pela caixa da padaria, pelo jornaleiro da esquina, pelo fantasma do Farol da Barra, pelo ascensorista do Elevador Lacerda, pelo país.
Qualquer ficha que traz a data da morte é uma espécie de congelamento. Significa que a partir daquele dia e hora, tudo na pessoa vira passado. Sem futuro. Mas isso não quer dizer que a gente não possa imaginar. Não possa trafegar no universo do se. Se Gildo não tivesse sido morto teria visto a filha nascer e crescer, teria se tornado avô. Não faço ideia em quem ele teria votado nas eleições de 2014. Mas isso tem importância?
O que interessa é que ele estaria com sessenta e seis anos e poderia se sentar à mesa e contar muitas histórias. Tristes, divertidas, edificantes ou irônicas. Certamente ele narraria muitas vezes a sua prisão, o medo que sentiu por ele e por sua mulher grávida que também foi presa. Contaria da violência sofrida, mas também do sonho, da juventude, do projeto de um Brasil melhor, mais justo. Com certeza, ele teria ouvintes. Gente nova que arregalaria olhos assustados para o país dos anos da ditadura.
David Capistrano da Costa
Nascimento: 16 de novembro de 1913 
Cidade natal: Boa Viagem, CE
Desaparecimento: março de 1974
A primeira vez que ouvi falar do David Capistrano da Costa foi por intermédio do meu pai, um comunista de carteirinha. Então os dois eram do Partidão. Papai na base, David na diretoria. Anos depois meu pai, já no PT, me falou de outro David Capistrano, o filho. Este, morto precocemente, foi prefeito de Santos e brilhou no sistema de saúde da cidade.
Mas o assunto desta crônica é o David Capistrano, pai. Antes de ser “desaparecido” – ao lado de José Roman, em março de 1974, numa viagem entre a gaúcha Uruguaiana e São Paulo – David encarnou o sonho de todos os comunistas da velha-guarda, o de ser um soldado internacional. Afinal, os injustiçados do planeta não são todos iguais?
Nascido em Boa Viagem, Ceará, em 1913, o garoto iria ver muito mais do que paisagens do sertão e ouvir além dos gritos agudos das arapongas. Assim em 1935, ele participa do Levante Comunista no Rio de Janeiro, capital federal. Aquele em que deu tudo errado, pois o povo faltou ao encontro. David, então sargento, é expulso das Forças Armadas e levado ao famoso presídio da Ilha Grande. De onde, com outros companheiros, foge a nado. Um ano depois, David entra na Espanha, integrando as Brigadas Internacionais com o objetivo de derrotar o generalíssimo Franco. Seria mais uma batalha perdida.
O país seguinte é a França. Lá o insistente comunista participa, juntos aos partisans, da Resistência Francesa frente à ocupação nazista. Ele é pego e deportado para um campo de prisioneiros na Alemanha. Depois de liberado, retorna ao Brasil sendo imediatamente preso. Ufa! É solto com a Anistia de 1945. Dois anos depois, é eleito deputado estadual pelo PCB. Tem uma vida parlamentar curta, uma vez que seu partido será rapidamente empurrado de volta para a ilegalidade. Com o mandato cassado, David segue editor da Folha do Povo e de A Hora – jornais ligados ao Partidão, em Pernambuco.
Por força do Golpe de 1964, pesadelo político em que os comunistas eram vistos como o feio diabo e acusados de comer criancinhas, Capistrano entra na militância clandestina. Algum tempo depois, embarca para a Tchecoslováquia. Até que o banzo bate forte. Ele volta ao Brasil. Mas por conta e obra dos militares, será para nunca mais ouvir o canto das sabiás e o vento balançando as palmeiras em flor.
Maria Lúcia Petit da Silva 
Nascimento: 20 de março de 1950 
Cidade natal: Agudos – SP 
Morte: 16 de junho de 1972 
Local da morte: Pau Preto, Araguaia 
Causa da morte: tiro 
Identificação da ossada: maio de 1996
Há quem diga que Maria Lúcia morreu em confronto com uma patrulha do Exército na região do Araguaia, sul do Pará. Nessa versão, ela tombou com o revólver na mão e a revolução no coração. Também há o relato de que Maria teria sido executada: recebeu o tiro e caiu morta. O assassino seria um camponês que se fazia de amigo, quando na verdade era inimigo. Dez minutos depois do disparo de carabina, helicópteros do Exército Brasileiro apareceram metralhando a área.
Passados 43 anos, as versões de como a jovem de 22 anos morreu ainda convivem. Mas há fatos irrefutáveis. Por exemplo, a ocultação do cadáver. Na época da ditadura militar, a ordem era matar, por tortura ou execução, e sumir com o corpo. Tal prática é a raiz da eternizada angústia de familiares e amigos que nunca puderam enterrar os seus queridos.
Mas no caso de Maria Lúcia Petit da Silva, em 1991, a história começou a mudar quando a ossada de uma mulher, enrolada num pedaço de pano de paraquedas, foi encontrada no cemitério de Xambioá (em tupi, pássaro feroz), no atual Tocantins. Os indícios apontavam se tratar dos restos mortais de uma guerrilheira do Araguaia.
Cinco anos depois, houve o reconhecimento feito por técnicos da Unicamp. Maria Lúcia foi sepultada em Bauru, com a presença de sua mãe Julieta. No entanto, seus irmãos Jaime e Lúcio seguem desaparecidos, como aliás todos os outros militantes da Guerrilha do Araguaia. Para nunca esquecer: 434 pessoas morreram ou desapareceram nos anos de chumbo. É claro que estamos falando dos nomes notificados.
Apesar da existência breve, Maria Lúcia fez história política. No fulgurante 1968 – ano marcado por juventudes nas ruas em vários países – ela participou do movimento estudantil secundarista. Dois anos depois, militante do PCdoB, foi para Goiás e logo após para o sul do Pará. A ideia era estar ao lado dos camponeses para tecer a resistência à ditadura de 1964 e preparar a revolução que – na visão daquela esquerda – derrubaria as injustiças do Brasil. Roubaram-lhe a vida por conta disso.

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Osvaldo Orlando da Costa
Nascimento: 27 de abril de 1938
Cidade natal: Passa Quatro – MG
Morte: abril de 1974
Região final: matas do Araguaia
Causa da morte: tiro
Status: desaparecido
A Guerrilha do Araguaia tem uma narrativa fragmentada. Um quebra-cabeça de fatos e versões. Há uma névoa. Em parte, por insistência das Forças Armadas em negar que os acontecimentos tenham acontecido. Seguindo a ordem de matar e ocultar, quase meio século depois, dezenas de militantes seguem na macabra lista de desaparecidos. Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão do PCdoB, é um deles.
Apontado como o primeiro militante a chegar no Araguaia, em 1966, e um dos últimos eliminados por volta de abril de 1974. Nesses oito anos, Osvaldão ficou famoso, entre os camponeses da região, por ser profundo conhecedor da arte de escapar, se esconder, sobreviver. Tal capacidade irritou bastante os militares, a ponto de sua captura ser tratada como questão de honra. Quando o exército infiltrou agentes entre os militantes, a lógica era serem discretos. Com exceção do Osvaldo: “Se trombarem com ele, eliminem”. Mesmo que isso estragasse o disfarce.
Antes do Araguaia, o mineiro de Passa Quatro viveu na capital da ex-Tchecoslováquia, onde cursou até o terceiro ano de Engenharia de Minas. Homem negro, quase dois metros de altura, 100 quilos, boxeador amador, carismático, ele fez furor no leste europeu. “Quando cheguei em Praga, os meninos passavam saliva no dedo e esfregavam meu braço, para ver se a cor da minha pele saía. Eles nunca tinham visto um negro.” Segundo o escritor theco Cytrian Ekwensi, o brasileiro literalmente “parou a cidade”.
Muito se conta de Osvaldão no Araguaia. Alguns matutos o consideravam imortal. Soldados temiam sua força e astúcia. Mas tudo isso terminou no dia que um tiro voou em sua direção. Testemunhas relatam que, na sequência, os militares içaram o morto por helicóptero e expuseram o cadáver para intimidar os camponeses. Depois cortaram sua cabeça e deram sumiço no corpo. Restaram a fama, a lenda, as lacunas da história.
Santo Dias da Silva
Nascimento: 22 de fevereiro de 1942
Cidade natal: Terra Roxa – SP
Morte: 30 de outubro de 1979
Região final: bairro de Santo Amaro, cidade de São Paulo
Causa da morte: tiro
Muita gente valorosa lutou, se sacrificou ou foi sacrificada, durante os anos de arbítrio (1964 a 1985). Uma parte militou porque teve consciência das injustiças, desigualdades, amordaçamentos. Eram estudantes, intelectuais, políticos, gente da classe média esclarecida. Outra parte foi impulsionada pela necessidade de conquistar direitos trabalhistas e melhores salários. O pessoal que não “escolheu” lutar. Simplesmente era preciso para engendrar uma existência mais livre, mais confortável, mais segura. Santo Dias da Silva pertencia ao segundo grupo.
Primeiro filho de uma série de oito, ele conheceu as penúrias e asperezas seculares dos meeiros da terra. Ainda adolescente compreendeu que “sonho bom é aquele em que se sonha junto”. Lá foi o Santo participar das reivindicações dos trabalhadores rurais. Levou a primeira cassetada política: sua família foi expulsa da fazenda. Pais e irmãos viraram boias-frias, e o jovem Santo Dias tocou para São Paulo – na época apelidada de sul maravilha.
Iniciou-se no ofício de operário metalúrgico. Continuou sua história de guerreiro. Atuou nas Comunidades Eclesiais de Base – as combativas e famosas CEBs. Se meteu em todas as demandas – também de base – transportes, escolas, luz elétrica, água encanada, asfalto na rua, comida na panela. Tinha dentro dele a convicção que os direitos são batalhados, nunca vêm de mão beijada. Assim como acreditava que para vencer era necessário se organizar entre companheiros e companheiras.
Os sindicatos, sob a ditadura, eram muito limitados e ligados ao peleguismo. A brecha foi trabalhar nas Comissões de Fábrica. Uma reivindicação aqui, outra ali. Uma paralisação ali, outra aqui. Até que chegou o ano de 1979. Em agosto, foi assinada a Lei de Anistia. A ditadura era madeira oca prestes a desabar.
Os metalúrgicos da região do ABC, em São Paulo, articulavam greves significativas que ecoavam pelo país. Panfletagens, piquetes, comandos, comissões sindicais agitavam portas e chãos de fábricas. Santos Dias era um dos líderes do movimento.
No 30 de outubro de 1979, em frente à fábrica Sylvania, durante panfletagem e piquete, a polícia chegou conjugando os verbos da violência. A ordem era bater e prender. Mas um soldado da PM atirou nas costas de um dos grevistas.
Santo Dias da Silva caiu morto. Deixou a mulher Ana, sindicalista e feminista e dois filhos. Fim da história para ele. Mas também mais uma pá de cal no regime militar. O assassinato do operário causou indignação nacional. Milhares de pessoas compareceram à missa de corpo presente na Catedral da Sé, conduzida por Dom Paulo Evaristo Arns. Na ocasião, o cardeal valente disse: “Quase nada está certo nesta cidade, enquanto houver duas medidas: uma para o patrão, outra para o operário”.
Ana Rosa Kucinski Silva
Nascimento: 12 de janeiro de 1942
Cidade natal: São Paulo – SP
Data do desaparecimento: 22 de abril de 1974
A professora saiu do Instituto de Química da USP avisando que iria almoçar no centro, lá pelas bandas da Praça da República, com o marido Wilson Silva. Ele, igual a ela, militava contra a ditadura. Nunca mais o casal foi visto. Os familiares perguntaram ao general presidente, ao ministro, ao bispo, ao universo: Onde está Wilson? Onde está Ana Rosa? Silêncio. Dezoito anos depois, Almílcar Lobo – tenente médico que dava suporte nas torturas – informou que Ana e Wilson foram assassinados na Casa da Morte em Petrópolis, RJ. Seus corpos foram despedaçados.
Wilson Silva
Nascimento: 21 de abril de 1942
Cidade natal: Taubaté – SP
Data do desaparecimento: 22 de abril de 1974
No dia anterior ao seu desaparecimento e de sua mulher Ana Rosa Kucinski, Wilson Silva havia completado 32 anos. Certamente no aniversário dele, e da morte de Tiradentes, deve ter lembrado de Taubaté – onde nasceu e viveu até os 19 anos. Depois, repassou sua vida de estudante de física na USP. Certamente pensou na sua paixão pela militância política, primeiro na Polop, agora na ALN. Ele e Ana estavam na ação por um país diferente do da ditadura militar. Uma terra melhor para todos. O que ele não sabia é que não haveria outros aniversários.
Fonte: Ilustrações e textos publicados originalmente no blog Nota de Rodapé.