
A avaliação de Jair Krischke, ativista de direitos humanos, sobre o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, entregue dia 10, em Brasília, é que “foi uma Comissão realizada apenas para atender a um clamor brasileiro, mas as condições para a realização do trabalho não foram dadas, o que é lamentável”
19/12/2014
Do IHU Online
“O relatório da Comissão Nacional da Verdade ficou devendo alguma coisa à sociedade brasileira, pois não aprofundou alguns temas como deveria ter aprofundado”, comenta Jair Krischke na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.
Na avaliação dele, a operação Condor, por exemplo, “deveria ter sido melhor avaliada. O relatório diz que não há elementos suficientes para provar a participação do Brasil na operação, mas eu posso falar solenemente desse assunto, porque prestei depoimento à Comissão da Verdade sobre isso. Documentei a questão, mostrando que quem criou a operação Condor foi o Brasil, sim”.
Para ele, uma das razões pelas quais a Comissão não conseguiu aprofundar suas investigações deve-se ao fato de pouquíssimas pessoas estarem envolvidas com as investigações. “E esse foi o principal problema. Depois, a própria presidenta prorrogou o prazo de atuação da Comissão da Verdade, e só mais tarde se deram conta das dificuldades e trouxeram mais pessoas para trabalhar, porque a investigação da Comissão começou com sete comissários e 14 auxiliares. Na Comissão da Verdade da África do Sul, que é sempre referida, 450 pessoas trabalharam”, pontua.
Apesar das críticas, Krischke assinala que é preciso “aplaudir as recomendações da Comissão da Verdade no relatório, que foram muito importantes, entre elas, a de extinguir as polícias militares como herança da ditadura. Em termos de segurança pública, é uma boa recomendação”.
O senhor leu o relatório da Comissão da Verdade?
Jair Krischke – Ainda não consegui ler, mas olhei alguns pontos, os quais posso comentar. Do que analisei até agora, penso que o relatório ficou devendo alguma coisa à sociedade brasileira, pois não aprofundou alguns temas como deveria ter aprofundado. Cito especialmente a questão da Operação Condor, que deveria ter sido melhor avaliada. O relatório diz que não há elementos suficientes para provar a participação do Brasil na operação, mas eu posso falar solenemente desse assunto, porque prestei depoimento à Comissão da Verdade sobre isso. Documentei a questão, mostrando que quem criou a Operação Condor foi o Brasil. Documentei o caso do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, e com isso ficou muito claro, nas documentações que entreguei, que o Brasil inaugurou essa prática, sim. Depois, apresentei o segundo caso de operação Condor, que é de junho de 1971, e outros documentos mais que mostram a participação brasileira no caso.
Costumam dizer, e eu contrario essa posição, que a operação Condor dá-se em Santiago do Chile em novembro de 1975. Bem, nessa ocasião se deu o nome da operação, mas dois militares brasileiros que participaram da reunião se declararam apenas e tão somente observadores e não assinaram a ata. Então, se vou tomar essa postura como boa, terei de dizer que o Brasil não tem nada a ver com a Operação Condor. Mas dizer que o Brasil não participou da operação Condor é um absurdo, porque participou em várias e várias ocasiões tanto com ações no exterior, especialmente em Buenos Aires, dando recibos ao aparelho repressivo argentino, como no território brasileiro, no Rio Grande do Sul, com o sequestro de argentinos no dia 12 de novembro de 1978, em Porto Alegre.
É verdade que quando enfrentamos essa situação nem sabíamos que o nome da operação era Operação Condor, mas lutamos contra um sequestro que ficou claríssimo, inclusive, com sentença policial, condenando policiais gaúchos que atuaram em conjunto com a repressão uruguaia, toda ela militar. Depois, em 1980, em pleno Aeroporto do Galeão, dois argentinos foram vítimas da Operação Condor. No meu depoimento documentei isso com um documento norte-americano que narra como se deu essa operação. Depois, ainda em 1980 – e quando falo da década de 1980, estou falando de um período pós-Lei de Anistia –, em junho, em Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, desaparecem o padre Jorge Oscar Adur, capelão montonero, e Lourenço Ismael Vinhas, jovem estudante de medicina, que vinham em ônibus diferentes. Então, citei os fatos, demonstrei documentos e acho que tudo isso, no relatório, ficou muito pobre.
E por que acha que se chegou a essa conclusão em relação à Operação Condor?
Estou falando daquilo que sei em função do meu depoimento. Imagino que outras pessoas também prestaram depoimentos e, ao lerem o relatório, vão achar que esses depoimentos deveriam ter sido mais trabalhados.
Uma das questões que apareceu, ainda quando se começou a discutir a criação da Comissão da Verdade e se falava em dois anos para examinar um período de 1946 a 1988, foi o fato de haver pouquíssimas pessoas envolvidas nas investigações. E esse foi o principal problema. Depois, a própria presidente prorrogou o prazo de atuação da Comissão da Verdade e só mais tarde se deram conta das dificuldades e trouxeram mais pessoas para trabalhar, porque a investigação da Comissão começou com sete comissários e 14 auxiliares. Na Comissão da Verdade da África do Sul, que é sempre referida, 450 pessoas trabalharam.
Foi intencional ter uma Comissão reduzida no Brasil?
Acho que sim; foi uma Comissão realizada apenas para atender a um clamor brasileiro, mas as condições para a realização do trabalho não foram dadas, o que é lamentável.
Além da Operação Condor, que outros pontos não foram explorados de modo suficiente pela Comissão?
Para responder a essa questão, vou ter de ler o relatório com mais atenção.
Quais são os pontos louváveis do relatório?
Sobre este aspecto, tenho de aplaudir as recomendações da Comissão da Verdade no relatório, que foram muito importantes, entre elas, a de extinguir as polícias militares como herança da ditadura. Em termos de segurança pública, é uma boa recomendação. Outro aspecto importantíssimo foi o fato de se ter utilizado o critério internacional da linha de comando, onde estão indicados os generais presidentes e os ministros militares, ou seja, toda a cadeia de comando responsabilizada. Isto eu aplaudo porque é isso que tem sido feito no mundo todo.
Quais aspectos destaca como sendo novidades ou boas apurações feitas pela Comissão da Verdade e apresentadas no relatório? A questão do genocídio indígena foi uma das grandes surpresas desta investigação?
O caso indígena não foi propriamente uma novidade. Esses acontecimentos apenas não eram muito divulgados e tampouco aprofundados. A Comissão abriu um pouco esse caso, mas houve muita dificuldade ao tentar esclarecer esse tema.
Quais as novidades do relatório acerca de locais onde eram praticados atos de tortura?
Neste aspecto, foi uma vergonha, porque se deve lembrar que a Comissão oficiou ao Ministro da Defesa, que levou alguns meses para responder em 455 páginas que nunca houve tortura nos quartéis. O parecer dele foi tão vergonhoso que depois tiveram de refazê-lo, porque não houve colaboração militar nesse processo.
O relatório deu algum destaque à atuação dos presos políticos?
Apenas relatos; não aprofundou os casos.
Como o senhor interpreta o fato de a presidenta ter se emocionado ao ter recebido o relatório, mas ter dito que “o Palácio do Planalto não fará qualquer gesto para incentivar a revisão da Lei da Anistia”?
A presidente disse o que nos esclarece: existem acordos políticos que devem ser cumpridos.
Depois da entrega do relatório, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, disse que Argentina, Chile e Uruguai já julgaram quem praticou crimes de Estado em suas ditaduras, mas o mesmo não ocorreu no Brasil, e nesse sentido, a presidenta Dilma disse que “nós reconquistamos a democracia à nossa maneira, por meio de lutas duras, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais, que estão muitos deles traduzidos na Constituição de 1988”. Como o senhor vê essas declarações?
Gostaria de saber que acordos são esses, porque esses acordos são espúrios. A imprensa deveria perguntar à presidente que acordos são esses. Eu, como cidadão, não fiz acordo nenhum. Nem acho que é preciso rever a lei de Anistia, mas lê-la com atenção, porque a lei diz que são anistiados crimes políticos e conexos. Conexos a quê? A crime político, evidentemente. Bem, agentes de Estado civil ou militar não podem cometer crime político, por serem agentes do Estado. E se eles cometerem crime, será crime comum. No artigo 2º da lei de Anistia há um parágrafo que diz que crimes contra pessoas não estão anistiados, e tanto é verdade que, promulgada a lei, muitos brasileiros continuaram na prisão. A lei é de agosto de 1979 e em fevereiro de 1980 havia greve de fome de preso político. Matar, torturar e desaparecer seria contra a pessoa ou não? Então, não se quer ler a lei tal qual está escrita.
Em termos políticos, o que se espera depois da entrega do relatório da Comissão da Verdade?
Inaugura-se um novo tempo de discussão e de debate a partir do que aparece no relatório. Nesse sentido, há bastantes elementos para discutirmos daqui para frente.