Inaugura-se um novo tempo de discussão e de debate

Antonio Cruz/ ABr

A avaliação de Jair Krischke, ativista de direitos humanos, sobre o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, entregue dia 10, em Brasília, é que “foi uma Comissão realizada apenas para atender a um clamor brasileiro, mas as condições para a realização do trabalho não foram dadas, o que é lamentável”

19/12/2014

Do IHU Online

“O relatório da Comissão Nacional da Verdade ficou devendo alguma coi­sa à sociedade brasileira, pois não apro­fundou alguns temas como deveria ter aprofundado”, comenta Jair Krischke na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.

Na avaliação dele, a operação Condor, por exemplo, “deveria ter sido melhor avaliada. O relatório diz que não há ele­mentos suficientes para provar a partici­pação do Brasil na operação, mas eu pos­so falar solenemente desse assunto, por­que prestei depoimento à Comissão da Verdade sobre isso. Documentei a ques­tão, mostrando que quem criou a opera­ção Condor foi o Brasil, sim”.

Para ele, uma das razões pelas quais a Comissão não conseguiu aprofundar su­as investigações deve-se ao fato de pou­quíssimas pessoas estarem envolvidas com as investigações. “E esse foi o prin­cipal problema. Depois, a própria presi­denta prorrogou o prazo de atuação da Comissão da Verdade, e só mais tarde se deram conta das dificuldades e trou­xeram mais pessoas para trabalhar, por­que a investigação da Comissão começou com sete comissários e 14 auxiliares. Na Comissão da Verdade da África do Sul, que é sempre referida, 450 pessoas tra­balharam”, pontua.

Apesar das críticas, Krischke assina­la que é preciso “aplaudir as recomen­dações da Comissão da Verdade no rela­tório, que foram muito importantes, en­tre elas, a de extinguir as polícias milita­res como herança da ditadura. Em ter­mos de segurança pública, é uma boa re­comendação”.

O senhor leu o relatório da Comissão da Verdade?

Jair Krischke – Ainda não consegui ler, mas olhei alguns pontos, os quais posso comentar. Do que analisei até ago­ra, penso que o relatório ficou devendo alguma coisa à sociedade brasileira, pois não aprofundou alguns temas como de­veria ter aprofundado. Cito especialmen­te a questão da Operação Condor, que deveria ter sido melhor avaliada. O rela­tório diz que não há elementos suficien­tes para provar a participação do Brasil na operação, mas eu posso falar solene­mente desse assunto, porque prestei de­poimento à Comissão da Verdade sobre isso. Documentei a questão, mostrando que quem criou a Operação Condor foi o Brasil. Documentei o caso do coronel Je­fferson Cardim de Alencar Osório, e com isso ficou muito claro, nas documenta­ções que entreguei, que o Brasil inaugu­rou essa prática, sim. Depois, apresentei o segundo caso de operação Condor, que é de junho de 1971, e outros documentos mais que mostram a participação brasi­leira no caso.

Costumam dizer, e eu contrario es­sa posição, que a operação Condor dá­-se em Santiago do Chile em novem­bro de 1975. Bem, nessa ocasião se deu o nome da operação, mas dois milita­res brasileiros que participaram da reunião se declararam apenas e tão so­mente observadores e não assinaram a ata. Então, se vou tomar essa postu­ra como boa, terei de dizer que o Bra­sil não tem nada a ver com a Opera­ção Condor. Mas dizer que o Brasil não participou da operação Condor é um absurdo, porque participou em várias e várias ocasiões tanto com ações no ex­terior, especialmente em Buenos Ai­res, dando recibos ao aparelho repres­sivo argentino, como no território bra­sileiro, no Rio Grande do Sul, com o se­questro de argentinos no dia 12 de no­vembro de 1978, em Porto Alegre.

É verdade que quando enfrentamos essa situação nem sabíamos que o no­me da operação era Operação Condor, mas lutamos contra um sequestro que ficou claríssimo, inclusive, com senten­ça policial, condenando policiais gaú­chos que atuaram em conjunto com a repressão uruguaia, toda ela militar. Depois, em 1980, em pleno Aeroporto do Galeão, dois argentinos foram víti­mas da Operação Condor. No meu de­poimento documentei isso com um do­cumento norte-americano que narra co­mo se deu essa operação. Depois, ainda em 1980 – e quando falo da década de 1980, estou falando de um período pós­-Lei de Anistia –, em junho, em Uru­guaiana, na fronteira com a Argentina, desaparecem o padre Jorge Oscar Adur, capelão montonero, e Lourenço Ismael Vinhas, jovem estudante de medicina, que vinham em ônibus diferentes. En­tão, citei os fatos, demonstrei documen­tos e acho que tudo isso, no relatório, fi­cou muito pobre.

E por que acha que se chegou a essa conclusão em relação à Operação Condor?

Estou falando daquilo que sei em fun­ção do meu depoimento. Imagino que outras pessoas também prestaram de­poimentos e, ao lerem o relatório, vão achar que esses depoimentos deveriam ter sido mais trabalhados.

Uma das questões que apareceu, ain­da quando se começou a discutir a cria­ção da Comissão da Verdade e se fala­va em dois anos para examinar um pe­ríodo de 1946 a 1988, foi o fato de ha­ver pouquíssimas pessoas envolvidas nas investigações. E esse foi o princi­pal problema. Depois, a própria presi­dente prorrogou o prazo de atuação da Comissão da Verdade e só mais tarde se deram conta das dificuldades e trouxe­ram mais pessoas para trabalhar, por­que a investigação da Comissão come­çou com sete comissários e 14 auxilia­res. Na Comissão da Verdade da África do Sul, que é sempre referida, 450 pes­soas trabalharam.

Foi intencional ter uma Comissão reduzida no Brasil?

Acho que sim; foi uma Comissão rea­lizada apenas para atender a um clamor brasileiro, mas as condições para a reali­zação do trabalho não foram dadas, o que é lamentável.

Além da Operação Condor, que outros pontos não foram explorados de modo suficiente pela Comissão?

Para responder a essa questão, vou ter de ler o relatório com mais atenção.

Quais são os pontos louváveis do relatório?

Sobre este aspecto, tenho de aplaudir as recomendações da Comissão da Ver­dade no relatório, que foram muito im­portantes, entre elas, a de extinguir as polícias militares como herança da dita­dura. Em termos de segurança pública, é uma boa recomendação. Outro aspec­to importantíssimo foi o fato de se ter utilizado o critério internacional da li­nha de comando, onde estão indicados os generais presidentes e os ministros militares, ou seja, toda a cadeia de co­mando responsabilizada. Isto eu aplau­do porque é isso que tem sido feito no mundo todo.

Quais aspectos destaca como sendo novidades ou boas apurações feitas pela Comissão da Verdade e apresentadas no relatório? A questão do genocídio indígena foi uma das grandes surpresas desta investigação?

O caso indígena não foi propriamen­te uma novidade. Esses acontecimen­tos apenas não eram muito divulgados e tampouco aprofundados. A Comissão abriu um pouco esse caso, mas houve muita dificuldade ao tentar esclarecer esse tema.

Quais as novidades do relatório acerca de locais onde eram praticados atos de tortura?

Neste aspecto, foi uma vergonha, por­que se deve lembrar que a Comissão ofi­ciou ao Ministro da Defesa, que levou alguns meses para responder em 455 páginas que nunca houve tortura nos quartéis. O parecer dele foi tão vergo­nhoso que depois tiveram de refazê-lo, porque não houve colaboração militar nesse processo.

O relatório deu algum destaque à atuação dos presos políticos?

Apenas relatos; não aprofundou os casos.

Como o senhor interpreta o fato de a presidenta ter se emocionado ao ter recebido o relatório, mas ter dito que “o Palácio do Planalto não fará qualquer gesto para incentivar a revisão da Lei da Anistia”?

A presidente disse o que nos esclarece: existem acordos políticos que devem ser cumpridos.

Depois da entrega do relatório, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, disse que Argentina, Chile e Uruguai já julgaram quem praticou crimes de Estado em suas ditaduras, mas o mesmo não ocorreu no Brasil, e nesse sentido, a presidenta Dilma disse que “nós reconquistamos a democracia à nossa maneira, por meio de lutas duras, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais, que estão muitos deles traduzidos na Constituição de 1988”. Como o senhor vê essas declarações?

Gostaria de saber que acordos são es­ses, porque esses acordos são espúrios. A imprensa deveria perguntar à presi­dente que acordos são esses. Eu, como cidadão, não fiz acordo nenhum. Nem acho que é preciso rever a lei de Anistia, mas lê-la com atenção, porque a lei diz que são anistiados crimes políticos e co­nexos. Conexos a quê? A crime político, evidentemente. Bem, agentes de Estado civil ou militar não podem cometer cri­me político, por serem agentes do Esta­do. E se eles cometerem crime, será cri­me comum. No artigo 2º da lei de Anistia há um parágrafo que diz que crimes con­tra pessoas não estão anistiados, e tanto é verdade que, promulgada a lei, muitos brasileiros continuaram na prisão. A lei é de agosto de 1979 e em fevereiro de 1980 havia greve de fome de preso político. Matar, torturar e desaparecer seria con­tra a pessoa ou não? Então, não se quer ler a lei tal qual está escrita.

Em termos políticos, o que se espera depois da entrega do relatório da Comissão da Verdade?

Inaugura-se um novo tempo de discus­são e de debate a partir do que aparece no relatório. Nesse sentido, há bastantes elementos para discutirmos daqui para frente.

 

Fonte: http://brasildefato.com.br/node/30872