Autor revela os bastidores do livro “Memórias de uma Guerra Suja”

São Paulo – “Ele estava muito magro, esquelético. Na maca do hospital, vestindo o uniforme presidiário me disse que queria falar tudo. Contou que era outro homem, um novo Cláudio Guerra, e queria entregar sua vida pra eu escrever. Tomei um susto”. O jornalista Rogério Medeiros relembra o primeiro contato com o ex-delegado do Departamento de Ordem Política Social (DOPS) do Espírito Santo, que culminou na publicação do livro “Memórias de uma Guerra Suja” (Editora Topbooks, R$ 44), em parceria com Marcelo Netto.

O livro é composto por uma série de depoimentos em primeira pessoa nos quais Cláudio Antônio Guerra, hoje com 71 anos, admite participação em crimes cometidos nas décadas de 70 e 80, além de revelar nomes que compunham os órgãos de repressão no período militar. O ex-delegado confessa, por exemplo, que incinerou 11 corpos de militantes políticos em uma usina de cana-de-açúcar no norte do Rio de Janeiro em 1973, entre eles o de Ana Rosa Kucinski e David Capistrano. Admite que esteve na reunião em que foi determinada a morte do delegado do Dops de São Paulo, Sérgio Fleury em 1979, e sua participação no atentado contra o show de 1º de maio no Pavilhão do Riocentro, dois anos depois. Também revela sua participação no assassinato do jornalista Alexandre Von Boungarten e denuncia outros projetos que visavam a implantação definitiva da ditadura militar no Brasil.

Ainda na década de 70, Rogério Medeiros fez uma vasta investigação sobre Cláudio Guerra: desde sua trajetória como oficial de justiça no interior do Espírito Santo até a entrada na polícia e sua consolidação com um dos mais importantes homens do Dops. Foram publicadas uma série de reportagens no Jornal do Brasil que desmistificaram a imagem de Guerra, que até então era visto como “defensor da ordem e dos bons costumes”. Foi revelada sua ligação com o crime organizado, a participação em uma ação que culminou na morte de 43 pessoas, entre trabalhadores e lideranças rurais, e acusações de queima de arquivos públicos. “A matéria que escrevi para o JB colocava em jogo essa imagem de justiceiro, combatente do crime. E aí ele cai na esparrela. O governador Max Mauro fez o inquérito e entregou à polícia federal. Ele [Guerra] surge como chefe do crime organizado e em seguida vai preso”, conta Medeiros.

A condenação de Guerra também advém de sua relação estreita com o assassinato do bicheiro Jonathas Borlamarques de Souza em 1982, além de sua ligação com a prática do jogo ilegal. O ex-delegado do Dops é acusado, ainda, de matar sua primeira esposa e ex-cunhada em 1980, crime pelo qual ele alega inocência até hoje e cuja condenação continua em aberto.

Após sete anos na prisão, Guerra é transferido para uma casa de repouso, onde cumpre liberdade condicional. “Na cadeia eu passei a conhecer Jesus. Ao me aprofundar no conhecimento da palavra do Senhor, vi a necessidade de caminhar para além do perdão. E assim resolvi vir a público revelar todos os meus atos quando trabalhei em favor do regime militar. Aquilo que para mim era matar um inimigo ficou claro, com Jesus, não passar de crime hediondo, que a partir de agora todos vão conhecer. (…) Passei a acreditar que poderia ter uma vida nova, na companhia de deus. Agora minha luta é esta: ter uma vida normal. Estou em paz”. Hoje Guerra é pastor da igreja Assembléia de Deus em Vitória (ES).

A confecção do livro levou cerca de três anos. Embates e atritos ocorreram antre os jornalistas e o relator, consequência da dificuldade de apuração dos fatos, da relutância em resgatar uma memória tão antiga e o receio de denunciar nomes ainda em voga no cenário político brasileiro. “Ou diz tudo ou não diz nada”, essa foi a frase proferida por Medeiros diante dos temores de Guerra. O jornalista também comenta o fato de o livro ser narrado em primeira pessoa, foco de discussão entre os profissionais no processo de composição das memórias: “Ele tinha que falar em primeira pessoa, ele tinha que dizer que matou. Não adianta nada nós escrevermos que ele fez isso, fez aquilo… Isso para poder ser coerente até com seu discurso de que está deixando tudo isso pra trás e entrando em outra vida ”.

A ligação entre Guerra e Medeiros embasa-se em critérios estritamente profissionais, diz o jornalista. Ele conta que em todos os encontros manteve uma distância de seu entrevistado, tratando-o como um “criminoso”, fato que também foi motivo de impasses durante a organização do livro. “Eu não estou aqui para defender o Cláudio. Eu fiz o meu papel de pegar os fatos e averiguar para ver se eles tinham mesmo acontecido. Eu não tenho uma relação próxima com ele. Eu trabalhei com ele. Depois da publicação do livro nós não mantemos contato”.

Marcelo Netto, que segundo a editora do livro, a Topbooks, recusa-se a dar entrevistas, construiu outro tipo de relação com seu entrevistado. Na apresentação do livro escreve: “Em nossas longas conversas pessoais e pelo Skype tentei entender o que ia dentro da sua cabeça. Fustigava sua memória, mas procurava compreender a sua fé e o que o motivava a falar depois de tanto tempo. (…) Prometi que, na medida do possível, vou estar ao seu lado na caminhada que começa com a publicação do seu depoimento”.

Na mesma apresentação, Netto faz menção ao jornal Folha de S. Paulo e às Organizações Globo, bem como a seus respectivos dirigentes, Paulo Frias e Roberto Marinho, agradecendo-os pela importância que tiveram na sua formação profissional e revelando sua relação íntima com ambos. As duas páginas nas quais o jornalista escreve seu agradecimento também contém trechos em que o autor pede, de certa forma, desculpas pelo conteúdo do livro.

Há, nos relatos de Guerra, partes em que revela a participação da Folha em atentados contra militantes políticos em São Paulo e a presença constante de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, chefe de direção de programação e produção da TV Globo, na sauna em que os militares e simpatizantes do regime se encontravam para planejar ações que visavam a implantação definitiva da ditadura no Brasil.

A quebra do silêncio de Guerra, para Netto, representa um importante passo para a consolidação da democracia no país. “Os militares não devem ter medo de conviver com os erros de um passado que acabou levando, por caminhos tortos, a um Brasil melhor”.

Ex-militares e componentes da Comunidade de Informação, “conjunto de órgãos estatais responsáveis pela segurança interna do país e pelo combate à subversão”, citados por Guerra, alegam que os relatos do ex-delegado são falaciosos. O coronel Juarez e o coronel Ustra anunciaram publicamente que não o conhecem. Mas Guerra respondeu que está disposto a enfrentá-los na Comissão da Verdade.

A ausência de seu nome em listas de entidades de defesa dos direitos humanos explicaria-se porque ele não era considerado um torturador, e sim um matador. Outro fator que explicaria a inexistência do nome de Guerra nesses documentos é o uso frequente de codinomes como Dr. Reinaldo e Stanislau Meirelles. Muitos afirmam, porém, que o depoimento é fruto de um surto de loucura. Medeiros desmente: “Ele está completamente consciente do que está fazendo. Nos três anos que convivemos isso ficou claro pra nós ”.

Segundo Guerra, foi a fé reavivada na cadeia o motivo pelo qual revelou seu passado publicamente. “Cláudio quer deixar o passado pra trás e entrar em uma vida religiosa. Ele quer fazer isso. Não estou dizendo que é possível”, afirma Medeiros. O jornalista, no entanto, não acredita que o discurso do ex-delegado seja pautado apenas por motivos religiosos: “Por renome. Ele começou a contar tudo porque passou a conviver estritamente com a mídia. De repente resolveu fazer carreira como personalidade, como pastor. Ele quis sair fora do passado. Ele não quer se situar como se fosse um homem em busca de perdão, que tivesse arrependido. É assim: a vida para trás é essa e daqui pra frente eu vou ter outra vida ”.

Guerra saiu da casa de idosos em Vitória, onde estava hospedado, e recusa-se a dar entrevistas. Afirmou que só vai aparecer em público depois que for à Comissão da Verdade.

Fonte: Carta Maior 21/05/2012