Entrevista de João Vicente Goulart ao Causa Operaria

João Vicente Goulart

“Nunca é tarde para descobrir a verdade que estava sob o tapete, varrida pelos covardes”

Filho do ex-presidente João Goulart e presidente do Instituto que leva o seu nome, comenta a Comissão da Verdade sobre os crimes da ditadura, e a decisão de exumação do corpo de Jango

Causa Operária: Porque a suspeita de que João Goulart tenha sido assassinado?

João Vicente Goulart: São várias as suspeitas. Elas provém de documentos desclassificados, de depoimentos de agentes da ditadura, de provas circunstanciais, de atitudes tomadas pela ditadura na época do enterro de Jango, a ausência de autópsia tanto de parte do governo argentino, a uma certidão de óbito imprecisa, a ordem do comando das forças armadas de não permitir a abertura do caixão, do relatório da Comissão de investigação da Assembléia Legislativa do RS, do resultado da Comissão Parlamentar da Câmara Federal, do depoimento de Mario Barreiro Neira à Polícia Federal, em fim são inúmeros os indícios que existem.

Causa Operária: Qual a relação dessa suspeita e o período anterior ao golpe?

João Vicente Goulart: O governo ditatorial brasileiro foi a ponta de lança de uma destruição sistemática, orientada pelo pentágono e o Departamento de Estado americano de derrubar todas as democracias na América do Sul. Hoje sabemos pelos documentos desclassificados a participação vergonhosa da ditadura brasileira na queda da democracia em países como Uruguai, Chile, Bolívia e outros. As pegadas do sistema vão aparecendo à medida que vamos abrindo arquivos, tomando depoimentos e construindo o caminho de conhecer os verdadeiros heróis deste triste momento da história da Nação. É como reconstruir os pedaços dos acontecimentos através de uma história arqueológica, as pegadas dos dinossauros vão aparecendo como “homo sapiens” da brutalidade.

Causa Operária: Por muitos anos houve silêncio sobre toda essa história e o próprio nome de Jango. Por quê?

Vicente Goulart: O silêncio é próprio das ditaduras. O momento em que se produz a morte de Jango é o ano de 1976, ano de plena ditadura; o Brasil não tinha ainda sequer baralhado a possibilidade de anistia aos cassados, banidos, excluídos do convívio político. As ditaduras viviam o dilema da administração Carter que priorizava a economia aos países que respeitavam os direitos humanos, coisa que não era assim muito praticada pelos ditadores de plantão de uma população livre. Jango não representava apenas os janguistas, os trabalhistas; representava, em caso de abertura, a restituição viva da Constituição traída, representava a união dos brasileiros em restaurar o sistema democrático, era o símbolo do retorno da legalidade e dos direitos civis.

Causa Operária: Por outro lado, agora temos filmes e livros sendo lançados. Como você vê a volta desse debate? Por que acha que voltou à tona?

Vicente Goulart: É claro que estão aparecendo filmes, livros, peças de teatro, manifestações de júbilo com a Comissão da Verdade, com a Comissão de Mortos e desaparecidos, com a Comissão de Anistia e o depoimento dos familiares de desaparecidos e daqueles que sobreviveram ao holocausto das torturas. Só o Instituto Presidente João Goulart já produziu dois documentários a esse respeito: “JANGO EM 3 ATOS” em parceria com a TV Senado e agora recentemente “DOSSIÊ JANGO” que estreará em circuito nacional de cinema no dia 5 de julho em nível nacional, agora após sete anos , o Instituto conseguiu finalmente a cessão de terreno em Brasília para a construção do Memorial da Liberdade Presidente João Goulart, para que nunca mais essa história seja varrida para debaixo do tapete e esquecida. É uma obra do Prof. Niemeyer e que viabilizamos os projetos através da Lei Rouanet de incentivo à cultura do MINC, com o patrocínio da Petrobrás e Eletrobrás. Agora partiremos para a segunda etapa do projeto que é a captação para a obra civil.

Estamos preparando um filme dirigido pelo cineasta Roberto Farias, uma obra de ficção baseada em fatos reais que deve estar pronta no ano que vem para o cinema e posteriormente uma mini série para televisão. Estamos também programando um livro com entrevistas chamado “Jango X Jango” que mostrará o pensamento e ação dele, por ele mesmo.

Afinal devemos lembrar que 2014 não é somente o ano da Copa do Mundo. Devemos antes da festa do futebol fazermos uma profunda reflexão política e democrática , pois 2014 também é o ano dos 50 anos do Golpe de Estado que roubou dos brasileiros sua legitimidade institucional e mergulhou o país nas trevas da supressão das liberdades individuais, no fechamento do Congresso Nacional, na promulgação de presidentes generais sem voto através da prepotência dos fuzis e das baionetas, goela abaixo do povo brasileiro.

É claro que a história custa a ser escrita quando é sufocada pela força, mas ela se impõe, ela é a mãe da justiça, filha da Liberdade.

Causa Operária: Uma marca da discussão em torno de Jango feita pelo Instituto diz respeito ao nacionalismo e ingerência de interesses internacionais, a falta de autonomia nacional. Por quê? Você vê alguma relação disso com o que estamos vivendo agora e a volta desse debate?

Vicente Goulart: Sim, o nacionalismo e a proteção de nossas riquezas, de nosso subsolo, de nossas empresas estratégicas, não é um debate novo, atual; é um debate de 50 anos, é o debate das Reformas de Base que derrubaram o governo legítimo e constitucional do Presidente Goulart. A reforma agrária, a reforma urbana, a reforma educacional, a reforma bancaria, a reforma tributaria a lei de remessas de lucros ao exterior são propostas que ainda não foram implantadas no país. A reforma do Estado brasileiro e sua modernização na procura de um desenvolvimento em prol da justiça social e distribuição mais equitativa das riquezas nacionais, ainda terão que ir buscar na fonte das propostas de Jango a força para mudar o país na independência de sua soberania.

Causa Operária: Como a família recebeu a notícia de que o corpo de Jango seria exumado?

Vicente Goulart: A exumação do corpo de Jango se dá 36 anos depois de sua morte. Nunca é tarde para descobrir a verdade que estava sob o tapete, varrida pelos covardes que impuseram pela força a submissão do povo brasileiro. A verdade é que a família luta por este esclarecimento há um longo tempo, mais tempo do que se devia esperar, mas com mais altruísmo e certeza que esclarecer este fato é o mais importante para cicatrizar as feridas ainda abertas.

Causa Operária: Não é a primeira vez que essa proposta aparece. Você já declarou que a família negaria outros pedidos. Poderia contar essa história?

Vicente Goulart: Há muito tempo que se fala nessa possibilidade, mas vivíamos sob um período de cerceamento de liberdade e de verdades escondidas. Tampouco teríamos anos atrás uma tecnologia capaz de realizar uma autópsia com a precisão dos meios científicos que temos hoje. Não poderíamos autorizar essa exumação sob a tutela da ditadura. Tudo tem um tempo, tempo de semear, tempo de colher.

Causa Operária: Qual papel você acha que cumpre a Comissão da Verdade? O que vocês esperam?

Vicente Goulart: É necessário dizer que a investigação solicitada pelo Instituto Presidente João Goulart tem mais de seis anos apresentada ao Ministério Público, um pouco mais velha que a Comissão da Verdade, que veio exatamente para esclarecer e pressionar fatos como este que estavam parados por longos tempos sem a solução necessária que a questão de Direitos Humanos requer no Brasil.

É um avanço que devemos louvar e apoiar em todos os sentidos. Nos dará uma radiografia das atrocidades cometidas nos cárceres clandestinos e nos destinos dos desaparecidos pelos agentes do Estado brasileiro que desapareceram com estas pessoas quando estavam elas sob a proteção do Estado. É um grande avanço, e o será mais ainda quando avancemos mais e possamos punir estas atitudes covardes perpetuadas através destes crimes de lesa-humanidade.